A importância da Tanatopraxia para a Sociedade
A IMPORTÂNCIA DA TANATOPRAXIA PARA A SOCIEDADE
SERGIO PORTELA
phortela@yahoo.com.br
Centro de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão Oswaldo Cruz
Resumo: Este artigo tem como objetivo demonstrar o surgimento e a importância da tanatopraxia para o acolhimento às famílias enlutadas pela perda do ente querido, como também o acolhimento à sociedade e ao Estado. Sabemos que o corpo após a morte continua transmitindo vírus, fungos e bactérias, e isso pode ser uma fonte de transmissão de doenças aos familiares e amigos que porventura estejam presentes na cerimônia de velório. Com patologias se propagando, a sociedade e o Estado acabam perdendo muito com isso, pois pessoas podem vir a falecer; deixarem de ir ao trabalho e com isso surgir a perda da força de trabalho, afetando a economia de uma país; o Sistema Único de Saúde (SUS) pode ficar sobrecarregado trazendo diversos prejuízos de ordem sanitária e financeira à sociedade e ao Estado, etc. Portanto a tanatopraxia, como técnica de higienização e conservação do corpo, tem como finalidade eliminar tais vírus, fungos e bactérias presentes no corpo do falecido ou da falecida. Assim, o referido procedimento traz conforto aos familiares, uma vez que parentes e amigos poderão dar um velório digno à pessoa que partiu, pois em muitos casos, se não existisse essa técnica, o velório teria de ocorrer com a urna mortuária lacrada. Dessa forma, familiares conseguem dar o último adeus ao ente querido e guardarem consigo uma boa lembrança do momento da partida.
Palavras-chaves: embalsamamento, tanatopraxia e mortuária.
Abstract: This article aims to demonstrate the emergence and importance of tanatopraxia for welcoming families mourning the loss of a loved one, as well as welcoming society and the State. We know that the body after death continues to transmit viruses, fungi and bacteria, and this can be a source of disease transmission to family members and friends who may be present at the funeral ceremony. With pathologies spreading, society and the State end up losing a lot with it, as people may die; stop going to work and with it come the loss of the workforce, affecting a country’s economy; The Unified Health System (SUS) can be overloaded, bringing various health and financial damages to society and the State, etc. Therefore, tanatopraxia, as a technique for cleaning and preserving the body, aims to eliminate such viruses, fungi and bacteria present in the body of the deceased or deceased. Thus, this procedure brings comfort to family members, since relatives and friends will be able to give a decent wake to the departed person, since in many cases, if this technique did not exist, the wake would have to take place with a sealed mortuary urn. In this way, family members are able to say the last goodbye to their loved one and keep a good memory of the moment of departure.
Keywords: embalming, tanatopraxia and mortuary.
1 INTRODUÇÃO
Sabemos que as técnicas de conservação de cadáveres não é algo novo, tendo nascido ainda na antiguidade com o povo egípcio. No entanto, naquela época se realizava o embalsamento, técnica que até hoje pratica a abertura das cavidades torácica e abdominal, com a retirada dos órgãos que são embebidos no formol e depois recolocados em suas referidas cavidades, na maioria das vezes acompanhados de serragem. Criada pelo químico e farmacêutico Jean-Nicolas Gannal, como veremos mais adiante, a tanatopraxia é a técnica de conservação de cadáveres com o corpo fechado, ou seja, diferentemente do embalsamamento, na tanatopraxia as caixas torácica e abdominal não precisam ser abertas para que a conservação do corpo aconteça.
Como técnica derivada do embalsamamento, a tanatopraxia tem elevada contribuição socioeconômica, uma vez que o corpo ao ser tratado e receber as devidas higienizações, não permitirá que vírus, fungos ou bactérias contaminem familiares e amigos que estarão presentes no velório do ente querido. Disso advém a importância deste trabalho, ao alertar que a propagação de doenças acaba sendo anulada com a conservação e higienização dos cadáveres, protegendo dessa forma os familiares, a sociedade e o Estado, que não terá demasiados gastos com o SUS (Sistema Único de Saúde). Além disso, esse trabalho visa mostrar também que através da tanatopraxia muitas famílias serão acolhidas, uma vez que ainda que o corpo esteja demasiadamente inchado e com extravasamentos de líquidos, mesmo assim, será possível trazer ao corpo a mesma aparência que possuía antes de perder a vida. Assim sendo, a urna mortuária (caixão) não precisará estar lacrada no momento do velório.
Esse tratamento do corpo através da tanatopraxia e o acolhimento aos familiares que ele oferece é tão importante e presente em nossa sociedade, que em 2013 dois pesquisadores realizaram entrevistas com 12 pessoas que haviam perdido seus entes queridos. Foi-lhes perguntado “o que significou o preparo do corpo do seu ente querido”, sendo que das entrevistas surgiram duas unidades temáticas: “prorrogando a vida do falecido” e “preservando a imagem do ente” (CINTRA, 2013). Através das referidas falas dos entrevistados e das referidas temáticas ficou evidenciado no trabalho dos pesquisadores que a tanatopraxia é de extrema importância para os familiares, uma vez que permite à família ficar um pouco mais ao lado daquele ou daquela que tanto amava.
No entanto, é importante destacar que o tanatofluído utilizado nessa conservação pode ser danoso ao meio ambiente. Para melhor entendermos esse dano, temos de recorrer à Tanatologia Forense a qual nos explica que são quatro as fases da putrefação: cromática, gasosa, coliquativa e esqueletização. Na terceira fase, chamada de coliquativa, o corpo se torna numa massa pútrida, contendo dois componentes altamente tóxicos chamados de putrescina e cadaverina, e se o corpo for inumado (enterrado) em jazigo não impermeabilizado, essa massa líquida alcançará o solo e logo após o lençol freático, contaminando ambos (PORTELA, 2020).
Para que o velório possa ocorrer se faz necessário retardar o avanço dessas fases de putrefação. Assim é de extrema importância que ele passe pelo processo de somatoconservação, ou seja, pela tanatopraxia. Dessa forma, será aplicado pela artéria carótida o tanatofluído que possui alto teor concentrado de formol, o qual percorrerá todo o sistema circulatório e o sangue será drenado. Contudo, se o corpo for inumado em jazigo não impermeabilizado, além da massa pútrida alcançar o solo e o lençol freático, como já foi explicado, esse formol presente no tanatofluído também alcançará ambos, sendo que a contaminação será inevitável (DELLA CROCE, 2019).
Portanto, para obter um resultado satisfatório para todos os grupos aqui citados, se faz necessário que o descarte do corpo seja feito através da cremação e não da inumação.
2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
Enquanto seres sociáveis que somos estamos vivendo sempre em contato com outras pessoas, sejam elas pais, mães, filhos, esposas, maridos, irmãos, amigos de vizinhança ou de trabalho. E nesse convívio acabamos nos apegando afetivamente uns aos outros, desejando a esses uma vida longa, repleta de saúde e felicidades.
Porém em vida, nos deparamos com algo que na maioria das vezes nos desapodera, algo que tira a nossa paz espiritual, isso causado pela triste notícia da morte de um ente querido. No entanto, se essa notícia é algo frustrante, saber que além da perda não se poderá realizar a despedida do corpo, é algo ainda mais impactante e doloroso.
No Brasil temos a cultura de realizarmos cerimônias fúnebres ou velar os mortos para que os familiares possam realizar a última despedida do corpo. Porém em muitos casos surge a impossibilidade de dar o último adeus com a urna mortuária aberta, seja porque existe perda óssea e tecidual no rosto ou porque o corpo se encontra demasiadamente inchado, podendo ocorrer extravasamento de fluídos corporais no velório.
É justamente nesse contexto de desalento que surge a tanatopraxia. Dentre os diversos benefícios que tal técnica proporciona, podemos citar o objetivo de permitir que a despedida do corpo possa ocorrer com a urna mortuária aberta e por longos períodos, além da eliminação de vírus e bactérias.
Além disso, em muitos casos a pessoa acaba falecendo num local e seu corpo precisará ser trasladado para outro local mais distante, seja por via aérea, seja por via terrestre, sendo que por via aérea essa higienização e conservação do corpo é obrigatória. Na Resolução da Anvisa de número 68, podemos observar em seu Artigo 7º, parágrafo 1º, o seguinte:
Art. 7º Será obrigatória a utilização de procedimento de conservação:
-
-
-
-
-
1º no translado internacional, por meio de embalsamamento e acondicionamento na urna funerária tipo II, impermeável e lacrada, especificada neste Regulamento.
-
-
-
-
Sendo assim, a tanatopraxia, como técnica derivada do embalsamamento, tem como finalidade evitar o extravasamento de líquidos e dejetos no momento em que se estiver realizando a cerimônia de despedida do corpo.
O embalsamento é a técnica de conservação que tem como objetivo inibir a putrefação do corpo, impedindo que muitas de suas partes se desconectem e permitindo que os cerimoniais fúnebres de inumação ou cremação possam ocorrer num período maior que 4 dias após o falecimento (CROCE; CROCE JUNIOR, 2012).
No entanto, existem autores que ampliam ainda mais o tempo de conservação do corpo embalsamado, relatando que muitos podem ser preservados por muitos anos devido a ação antisséptica dos agentes fixadores (HÉRCULES, 2014).
É notório que embalsamar é o ato de conservar um cadáver já necropsiado, ou seja, eviscerado; enquanto a tanatopraxia também tem como função a conservação do cadáver, porém sem ser necropsiado. Segundo Leonzo e Almeida (2018) o primeiro a desenvolver uma técnica de conservação de cadáveres cujo corpo não precisasse ser eviscerado foi o químico e farmacêutico francês Jean-Nicolas Gannal.
“Tais operações, que talhavam e dividiam o corpo humano, causavam a Gannal um verdadeiro horror, sendo, em sua opinião, ‘mais cruel para o coração que a destruição e a dissolução natural das partes’. O fato é que ele se debruçou, de início, sobre o processo de preservação de peças anatômicas, a este se dedicando por nove anos, a partir de 1826. Sua principal inovação foi a utilização de uma injeção composta de soluções de acetato e cloreto de alumínio por meio de aplicação nas artérias carótidas. A mesma técnica passou a ser aplicada nas práticas mortuárias, sendo combinada às lavagens aromáticas para permitir que se evitasse a mutilação do corpo por meio da retirada das vísceras”.
Nascia nessa época o “Sistema Gannal”, atualmente conhecido como tanatopraxia, ou seja, a técnica de conservação de cadáveres fechados, não necropsiados.
É possível notar que essa técnica não acolhe apenas as famílias entristecidas pela dor da perda, mas também a sociedade e o Estado[1]. Isso porque a higienização dos corpos elimina vírus, bactérias e fungos, não permitindo que amigos e parentes do falecido sejam contaminados, o que acarreta uma menor circulação de pessoas aos hospitais, ainda mais em épocas de pandemia. Portanto, a tanatopraxia acaba acolhendo os familiares, uma vez que poderão se despedir do seu ente querido; acolhe a sociedade, pois pessoas saudáveis não irão transmitir vírus e bactérias aos outros e por fim acolhe o Estado, que reduzirá uma parcela dos seus gastos com a saúde pública.
É importante destacar que esse acolhimento pode ter uma amplitude ainda maior, se logo após o velório os corpos forem direcionados à cremação e não à inumação[2]. Isso porque o formol, usado na tanatopraxia para higienizar o corpo, é cancerígeno[3] e tem um efeito altamente nocivo quando em contato com o solo e o lençol freático, agredindo dessa forma o meio ambiente.
Para melhor exemplificarmos esse perigo é necessário entender que os corpos na terceira fase da putrefação, chamada de fase coliquativa, se transformam numa massa aquosa e pútrida de cor acinzentada (FRANÇA, 2018).
Nesse momento de decomposição do corpo o formol nele aplicado, ainda estará ali. Se esse corpo for inumado em jazigo não impermeabilizado, como ocorre na maioria dos cemitérios públicos, esse formol será liberado alcançando o solo e em seguida o lençol freático, contaminando ambos (FELICIONI, 2007).
Tal fato é extremamente preocupante, pois pessoas que venham a ingerir essa água sem nenhum tratamento poderão ser contaminadas, sem falar que vivemos em épocas onde existe um grande apelo pela proteção das águas e pelo saneamento básico.
Segundo a “Ficha de Informações de Segurança de Produto Químico” da Companhia Petroquímica do Nordeste (Copenor), o formol é contaminante e pode prejudicar o meio ambiente quando em contato com as águas:
“Precauções para o meio ambiente: Evitar a contaminação dos cursos d’água vedando a entrada de galerias de águas pluviais (boca de lobo). Evitar que resíduos do produto derramado atinjam coleções de água construindo diques com terra, areia ou outro material absorvente, como pó de cimento, adicione bisulfeto de sódio. No caso de contaminação de água se a concentração foi igual ou superior a 10ppm, adicionar carvão ativado, com a finalidade adsorver o produto (WHO, 1991; HSDB, 2006).”
“Prevenção de perigos secundários: Evitar que o produto contamine riachos, lagos, fontes de água, poços, esgotos pluviais e efluentes (WHO, 1991; HSDB, 2006).”
Na mesma “Ficha de Informações da Copenor” é possível notar que o formol para ser desativado deve ser incinerado:
“Produto: Desativar o produto através de incineração em fornos destinados para esse tipo de operação…”
Assim podemos afirmar através deste artigo, que um corpo higienizado com formol e que logo após tenha sido cremado, não ocasionará nenhum dano aos familiares, à sociedade, ao Estado e ao meio ambiente, uma vez que permitirá aos familiares dar o último adeus ao ente querido sem que ocorra a transmissão de vírus ou bactérias, ao mesmo tempo em que protegerá de futuras contaminações o solo, o lençol freático e o ar que respiramos, pois um corpo ao ser incinerado não agredirá todo o nosso ecossistema.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Até aqui podemos observar que a tanatopraxia é uma ciência que objetiva a segurança social em vários sentidos. Isso porque ao ter em sua essência as técnicas necessárias para a higienização e conservação do cadáver, nos demonstra que é possível dar ao corpo a mesma feição que ele possuía em vida, ainda que esse corpo tenha sido acometido de grave patologia. Além disso, é possível eliminar diversos vírus, fungos ou bactérias que porventura estejam presentes no corpo, o que nos leva a considerar a segurança social, uma vez que a população estará protegida da propagação de doenças por cadáveres, evitando dessa forma que doenças sejam transmitidas no momento do velório.
Portanto essa ciência pode trazer um pouco mais de solidariedade aos familiares entristecidos pela dor da perda, pois o velório não precisará ocorrer com o caixão lacrado, o que acalenta amigos e parentes do falecido ou falecida.
Além disso, a sociedade e o Estado acabam ganhando com a referida técnica de somatoconservação, uma vez que pessoas não serão contaminadas e consequentemente não ficarão doentes, o que não deixará o Sistema Único de Saúde sobrecarregado.
No entanto, falta ainda às autoridades públicas o conhecimento de tal ciência e seus respectivos benefícios, para que a sociedade seja melhor beneficiada pela respectiva técnica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO, Rômulo de. O embalsamamento egípcio. 1ª ed. Lisboa: Biblioteca Cosmos, 1948.
CINTRA, José Carlos e KIEL, Greicy. Tanatopraxia sob a ótica da família enlutada. Revista Thêma et Scientia – Vol. 3, no 2, jul/dez 2013.
CROCE, Delton e CROCE JUNIOR, Delton. Manual de Medicina Legal. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
FELICIONI, Fernanda; ANDRADE, Flavio F. A.; BORTOLOZZO, Nilza. A Ameaça dos Mortos. 1º ed. São Paulo: Maxprint, 2007.
FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina Legal. 11ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2018.
HÉRCULES, Hygino de Carvalho. Medicina Legal: texto e atlas. 2ª ed. São Paulo: Editora Atheneu, 2014.
LEONZO, Nanci; ALMEIDA, M.J.S.S.P. Embalsamamentos no século XIX: segredos, técnicas e polêmicas. Khronos, Revista de História da Ciência, nº5, pp. 47 – 57. 2018. Disponível em <http://revistas.usp.br/khronos>. Acesso em 02/06/2020.
PORTELA, Sergio. Os Profissionais da Cremação. 1ª ed. São Paulo: Editora Dialógica, 2020.
SANTOS, Giovana Della Crocce e MENGHINI, Ricardo Palamar. Impactos ambientais negativos causados por necrópoles e propostas de mitigação. Atas de Saúde Ambiental (São Paulo, online), ISSN: 2357-7614 – Vol. 7, JAN-DEZ, 2019, p. 172-183.
https://protanato.com.br/categoria-produto/produtos-quimicos/ Acesso em 03/04/2021.
http://anubis.ind.br/catalogo/mobile/index.html Acesso em 03/04/2021.
https://www.tanatus.com.br/produtos.php?p=Qu%C3%ADmicos Acesso em 03/04/2021.
https://www.funeart.com.br/tanatopraxia Acesso em 03/04/2021.
[1] Conjunto de instituições que controlam e administram uma nação e o seu ordenamento jurídico.
[2] Ato de enterrar os corpos.
[3] Em seres humanos, quando inalado frequentemente ou quando ingerido acidentalmente.